terça-feira, 26 de maio de 2009

Irresponsabilidade, impunidade ou imunidade?

Publicado na revista Época, edição nº 574, de 16/05/2009.

O que dizer às mães de Gilmar e Carlos?
Ruth de Aquino

Perdão por ter causado a morte de seus filhos em segundos. Perdão por ter destruído, a 190 quilômetros por hora, o carro onde estavam Gilmar Yared, de 26 anos, e Carlos Murilo de Almeida, de 20. Eu tinha bebido muito. Perdão por não me lembrar de que existe Lei Seca. Perdão por não ter deixado de dirigir, mesmo com 130 pontos na carteira e 23 multas por excesso de velocidade. Perdão por ter violado as leis dos homens. Perdão pela Justiça, que não me punirá porque sou deputado e tenho foro privilegiado.
Ele é boa-pinta. Poderia ser ator. Mas o paranaense Fernando Ribas Carli Filho decidiu candidatar-se a deputado porque o pai é prefeito de Guarapuava, no Paraná, e o tio também é parlamentar. Carli Filho tem 26 anos, a mesma idade de um dos rapazes mortos no terrível acidente da madrugada do dia 7 de maio numa avenida de Curitiba. Yared era estudante de psicologia. Carlos Murilo trabalhava no cinema de um shopping havia cinco meses. Tiveram morte instantânea. Uma testemunha, Alice Brás, viu da janela de casa. Disse que o carro do deputado estava tão veloz que decolou e passou por cima do outro. Pedaços dos carros ficaram espalhados na rua por 100 metros. O carro das vítimas virou uma massa retorcida, sem teto e sem uma porta.
Acidentes acontecem. Alguns são fatalidade. “Este foi um crime”, disse o pai de Yared, Gilmar. Desde julho do ano passado, o deputado estadual Carli Filho (PSB) tinha perdido sua carteira de habilitação. Mas estava se lixando para esse detalhe.
“Perguntei por que não foi feito exame de dosagem alcoólica e me disseram que o deputado estava tomando medicamentos e era preciso ter autorização. No meu filho, fizeram o exame sem autorização”, disse Cristiane Yared. Dosaram a bebida somente dos mortos. Cristiane não se surpreendeu com o boletim dos bombeiros. Eles sentiram “hálito etílico” em Carli Filho na hora do resgate. “Nenhuma pessoa em sã consciência pode dirigir com aquela velocidade”, disse ela.
Talvez Cristiane esteja enganada. Ou o deputado bebe demais sempre, ou é capaz de dirigir tresloucadamente, mesmo sóbrio e em sã consciência. Em três de suas 30 multas, foi flagrado pelo radar com 50% acima da velocidade permitida. Apenas em um dia, 28 de setembro do ano passado, foi multado quatro vezes por excesso de velocidade em pouco mais de duas horas. E pensar que Carli Filho é autor de projeto de lei que prevê benefícios para bons motoristas.
O deputado envolvido num acidente de carro com a carteirasuspensa deve perdão à família dos mortos
A família Yared pediu a cassação do deputado por “quebra de decoro parlamentar”. Despido do mandato, ele perde o direito ao foro privilegiado e vai a júri popular. É o início de uma luta cheia de dores, frustrações e lágrimas, que não trará seu filho de volta. Uma luta contra padrinhos importantes: o governador do Paraná, Roberto Requião, teria mandado jatinho do Estado levar o deputado para o Hospital Albert Einstein, em São Paulo.
O presidente da Assembleia Legislativa do Paraná, Nelson Justus, pediu que se apure “eventual quebra de decoro parlamentar”. O regimento interno exige de deputados conduta exemplar dentro e fora da Casa. Mas tem parlamentar que se lixa para isso.
Se Carli Filho não perder o mandato, as investigações serão feitas pelo Poder Judiciário. O promotor do Ministério Público estadual, Rodrigo Chemin, confirmou a embriaguez do deputado, documentada por testemunhas. Uma semana após o acidente, o sangue do deputado ainda não tinha sido analisado.
Todos nós, até o julgamento, somos inocentes. Mas esses dois rapazes não estariam mortos se o deputado agisse corretamente. Perdeu a carteira? Faça novo exame, contrate um motorista. Dinheiro para isso ele tem.
Essa tragédia também precisa provocar reflexões sobre o foro privilegiado. Se for para manter o privilégio, que seja em delitos menores, sem mortes.
O deputado Carli Filho respira sem a ajuda de aparelhos e passa por exames clínicos e neurológicos. Na sexta-feira, não havia previsão de alta. Ele fará cirurgias para reconstrução da boca e da face. Quem sabe, junto, os médicos reconstruam sua consciência. E ele peça perdão às mães de Gilmar e Carlos.

Ruth de Aquino é diretora da sucursal de Época no Rio de Janeiro raquino@edglobo.com.br

3 comentários:

  1. Eis um tema recorrente nos dias de hoje. Aqui podemos discutir inúmeras questões: irresponsabilidade, impunidade, imunidade, desprezo pela vida humana (própria e de terceiros), legislação mais rigorosa para os infratores de trânsito e o julgamento como um cidadão comum de alguém que cometeu um crime. Sim, um crime, pois, impedido de dirigir, alcoolizado e a quase 200 km/h, não se pode pretender que alguém, ainda mais sendo ou principalmente por ser um parlamentar eleito pelo povo, não tenha plena consciência do risco de seus atos.

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  2. De início, o assunto me faz calar. Porque sou filha, sou mãe, sou amiga e sou humana. Não há como medir ou sequer supor a dor da perda de uma vida de forma tão trágica e inesperada.
    Mas também essa não é a questão. O tema que nos aflige é a inversão de valores; a impunidade; a desatenção com os sentimentos e com a vida. Entretanto, estou crédula de que não se trata pura e simplesmente de homens se debruçarem sobre papéis em seus gabinetes, criando leis novas e mais rigorosas, por vezes apenas para escrever seu nome na história, por simples vaidade. O que falta é fiscalização; pessoas sérias que realmente se importem com o próximo, dando a cada um o que é seu, cumprindo as leis que já existem e que são muitas. Até porque não são as leis que nos fazem pessoas corretas, mas o senso ético, o respeito, a educação. E isso não há lei ou justiça humana que possa ensinar.....pausa....
    Sinto tristeza ao imaginar que a conduta do "ilustre" deputado tão protegido pelos seus "pares", possa servir como exemplo de defesa em situações semelhantes no futuro, transformando o código de trânsito em mais uma balela. Afinal, não somos todos iguais perante a lei? Ou não?

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  3. Só espero de coração q isso não termine impune como a maioria dos casos envolvendo nossos politicos, não basta os escândalos de corrupção que estampam jornais e revistas quase que semanalmente e logo depois são esquecidos, agora vão brincar com nossas vidas ? BASTA.

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